Simples assim
Olhar o movimento da rua era sua maior diversão. Apesar dos quase 40 anos, nunca havia se cansado de fazer isso.
Acordar, alongar o corpo e deixar que a preguiça se afaste lentamente, comer seu desjejum matinal, tomar banho e em seguida correr para a laje da sua casa ávido pelas novidades que a rua certamente iria lhe ofertar.
Era uma casa antiga, diante de uma movimentada avenida de São Paulo.
Acomodou-se no parapeito do enorme terraço que compunha o andar superior da casa, onde existiam apenas 2 dormitórios:
Um, ocupado pelo casal, com porta balcão que dava acesso ao terraço, e outro, do lado oposto a este, que dava apenas vista para os fundos.
Gostava de observar as pessoas nas ruas e imaginar quais pensamentos e aflições traziam junto consigo, durante o trajeto ao passar em frente ao seu portão.
Os olhares de alguns, assustados, de outros muitas vezes vazio, alguns de olhar distante e de outros um olhar apreensivo de quem muito tem o que fazer, mas pouco tempo lhe resta para cumprir todos os seus compromissos. Se divertia chamando a atenção de alguns transeuntes, emitindo pequenos sons com a boca, esperando deles um olhar, um gesto, uma brincadeira qualquer. Percebia que alguns, tão mergulhados em seus mais profundos pensamentos, sequer ouviam alguma coisa. Outros, ao escutá-lo, se viravam para procurar de onde teria vindo aquele som, que mais parecia um delicado balbuciar de palavras. Por um instante, percebia que os semblantes mais preocupados se desfaziam apenas pela simples distração que a brincadeira oferecia. Talvez fosse essa, a maneira encontrada por ele, para ajudar, mesmo que de cima e de longe, a aliviar as angústias do dia de cada estranho passante que se aventurava caminhar por ali.
Jóca, como era conhecido entre os amigos, não era nenhum estudioso das ciências sociais, mas um observador atento do comportamento humano.
De audição extremamente aguçada, apesar da barulheira costumeira da Avenida Santo Amaro, conseguia facilmente ouvir as pessoas falando enquanto caminhavam. Os assuntos mais interessantes, eram daqueles que caminhavam sozinhos, a falar consigo, tal qual ele fazia muitas vezes também. Não que fosse um ser solitário, longe disso, mas resmungar sem a pretensão de transformar isso num motivo de conversa, era uma forma de se fazer presente entre os habitantes da casa.
Certa vez flagrou um casal aflito, que cochichavam entre si, combinando os últimos preparativos para a chegada de um cão, que haviam comprado, para distrair o filho Gustavo. Desviou a atenção e se pôs a pensar porque cargas d'água os seres humanos compravam animais para sua distração. Isso era algo incompreensível.
Outra vez, se pôs a ouvir as confidências de uma velha senhora, que falava consigo, recordando momentos de sua vida, como se não recordá-los fosse colocar em risco suas lembranças no futuro. Parecia de fato uma senhora muito preocupada em manter vivos em sua mente, todos os momentos vividos.
Ele não viu nisto uma lógica a ser aprendida e adotada, não! Não havia porque se preocupar em lembrar, visto que ele desfrutava intensamente de cada momento de sua vida.
Sua vida, desde o nascimento, era sabido que seria curta, e isso nunca foi motivo de preocupação para ele. Não fazia a menor ideia de quanto tinha para viver ainda, nem tampouco se preocupava com o tanto que já havia vivido. Apenas vivia e desfrutava de todas as oportunidades que lhe eram oferecidas para ser feliz, socializar, receber e doar carinho e afeto. Nunca houve em sua mente um instante sequer de preocupação com o futuro, e nunca carregou consigo uma mínima mágoa dos seus anos passados. Vivia o dia de hoje, com calma e atenção, e dele não esperava nada além do que poderia oferecer.
Não era um religioso, ou um estudioso da forma de vida oriental, apesar de saber que seus descendentes haviam sido reis em alguma parte do mundo.
Mas ele, em São Paulo, era apenas um descendente anônimo daqueles que num passado muito distante, foram considerados deuses!
Na parte da tarde, abandonava a lage para conviver um pouco com as crianças, seus irmãos, menores em idade, que adoravam se sentar para conversar com ele, brincar e assistir TV. Eram momentos realmente especiais, mas por vezes se escondia em algum lugar da casa para evitar a barulheira que as crianças faziam. Muitas vezes preferia as crianças da rua, que passavam, o avistavam, sorriam e brincavam com ele, mas tudo isso durava menos que 1 minuto. Parecia ser uma forma mais suportável de socialização. Outras vezes, chamava-os incessantemente enquanto seguiam seus caminhos, para que voltassem e conversassem mais alguns instantes.
A dose certa para a convivência, cada um determina, e fugir dos excessos para um cochilo, muitas vezes incompreendido, era seu jeito de ser, era parte do todo que compunha sua vida.
Por algum motivo, que ele mesmo não saberia definir, escolhia o convívio com seres humanos que, apesar de muitas vezes indecifrável, tornava sua vida mais feliz.
E porque tentar decifrar o outro, se de si mesmo pouco sabia e sequer se importava, porque a ele bastava viver e ser feliz ao seu modo.
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